Conversar com uma pessoa trans me fez perceber o exagero (ou terrorismo) que fazem com pronomes
Eu tenho notado que o ódio cresce mais fácil na cabeça de quem não tem contato direto com aquilo que tem medo. Trago aqui meu primeiro contato com uma pessoa trans para reflexão.
Essa história aconteceu muitos anos atrás e eu acho que vale a pena compartilhar, especialmente com quem não teve uma experiência mais pessoal. Até então, minhas referências de pessoas trans eram uma mistura de boatos, televisão, jornal e “piadas”. No caso, as piadas eram as mesmas frases decoradas, repetidas à exaustão, como criança que fala palavrão porque “não pode falar” e dá risadinha pra outra criança.
Enfim.
O grupo em que eu jogava online tinha talvez cinquenta pessoas ativas, jogando coisas variadas e bastante presentes no chat de voz. Eu gostava bastante pela diversidade de idades, origens, e por ter mulheres que eram tratadas como gente; sem aquele típico comportamento gamer masculino em que a presença de uma mulher faz alguns homens agirem de forma mais agressiva.
Era comum que alguém estivesse sozinho no chat de voz esperando alguém entrar. No decorrer do dia, mais gente chegava e o negócio ficava mais animado. Em um dia desses, eu estava só no chat e entrou uma pessoa com quem eu já tinha jogado. Ela deve ter dito “oi” e pediu pra que eu não me refira a ela por pronomes masculinos porque ela é uma mulher trans.
- Ah… Claro. Eu não…
- Não tem problema, não tinha como você saber - disse ela.
- Olha eu não conheço muitas pessoas trans então não estou habituado. Fique à vontade pra me corrigir se eu cometer o mesmo erro de novo.
- Tá tudo bem. Eu agradeço que você esteja tentando. Tem uma pessoa aqui que se recusa a aceitar meu pedido. - ela confessou em um tom neutro, como se já estivesse acostumada a se desapontar.
Eu não tinha a menor ideia do que se passava na cabeça de uma pessoa trans. O que é ofensivo? O que é aceitável? Como eu vou saber o que é insensível? O desconhecido me causou um pouco de desconforto. Deixei uma marca no username dela pra ficar mais fácil de lembrar.
Sabe quantas vezes eu precisei lembrar dos pronomes dela? Quase nenhuma. Em vários meses que se seguiram daquele episódio. Quase nenhuma.
O negócio dos pronomes é que quando você conversa com alguém, você fala na segunda pessoa. Quando você fala sobre a pessoa, normalmente ela não está presente, então o risco de cometer um erro na frente da pessoa é bem pequeno. E, em qualquer situação, você pode se referir a alguém pelo nome dela.
Pra mim, aceitar o pedido de alguém de usar determinados pronomes foi um esforço menor do que chamar alguém por um apelido.
Todo esse drama sobre pronomes para algo que é mais fácil de lidar que um apelido.
No decorrer dos anos conheci outras pessoas trans, na maioria offline. Elas eram pessoas. Tão pessoas quanto qualquer pessoa pessoaria. Da mesma forma que as outras mulheres no chat do grupo de anos atrás, era gente querendo ser tratada como gente. É pedir muito?
O ódio a pessoas trans está entre as mais rentáveis propagandas de desinformação atualmente. Temos empresas bilionárias que lucram quanto maiores os conflitos que tivermos um com os outros. Briga aumenta engajamento, que aumenta tempo de uso, que aumenta receita por anúncios, que infla as métricas divulgadas para acionistas em eterna busca do próximo unicórnio.
O pior de tudo é pensar que os crimes contra pessoas trans são em grande parte efeito colateral da maximização de lucros a qualquer custo, tal qual o câncer de pulmão para a indústria tabagista.
De certa forma parece que a Globo lucrando com brigas no BBB se tornou o Facebook lucrando com brigas de pessoas comuns. O circo que a gente podia escolher não participar nos cerca por todos os lados.